Nesta reflexão sobre o evangelho para a liturgia do próximo domingo, vamos ir ao texto de Mateus a partir da preocupação em torno da necessidade de buscarmos um novo estilo de vida, um novo jeito de estabelecer relações com todas as criaturas, de modo que possamos recuperar a vida como obra de arte que é bela e precisa ser vivida intensamente e com um sentido profundo.
O lugar de Mateus 6,24-34 no Sermão da Montanha
O nosso texto encontra-se no Sermão da Montanha (Mateus 5 a 7) e deve ser lido tendo como pano de fundo a doação da lei a Moisés no monte Sinai. Tanto no Decálogo do Sinai quanto na nova lei proposta por Jesus, o serviço a Deus e a cobiça ocupam lugares privilegiados, isto é, no início e no final (cf. Êxodo 20,3.17 e compare com Mateus 6,24). Nosso texto encontra-se no coração desse Sermão da Montanha, uma vez que está em seu capítulo central.
Em Mateus 6, Jesus apresenta uma economia que gera vida. Ele fala da solidariedade desinteressada para com os mais pobres (vv. 2-4), da partilha do pão cotidiano (v. 11) e do perdão de dívidas (v. 12). Em seguida, Jesus apresenta a economia de Deus em confronto com o projeto de quem serve ao dinheiro (Mateus 6,19-34). Aqui, Jesus vai ao ponto central da nossa condição humana: deixar-se levar pela cobiça e servir à riqueza ou deixar-se conduzir pelo dinamismo do amor e servir a Deus. São dois modelos econômicos, duas formas de organizar a sociedade. Uma tem como base o poder da riqueza, que gera angústia, fome, preocupações e injustiças. A outra prioriza uma estrutura social que privilegia a justiça do reinado de Deus, gera dignidade, alegria e vida cidadã.
A decisão fundamental (Mateus 6,24)
Neste versículo, Jesus revela a essência da economia de Deus. Não é um projeto econômico em que as pessoas gastam sua vida na luta pela sobrevivência, pelas necessidades fundamentais, tais como comer, beber e se vestir. Porém, Deus está preocupado com um projeto econômico em que sua vontade, sua justiça impregne um sistema que garanta a dignidade dos corpos de todas as pessoas na satisfação de direitos fundamentais que, segundo o texto, são os direitos à comida, à água e à roupa.
Aqui, Jesus explicita o sentido da bem-aventurança para os pobres (Mateus 5,3). Ser pobre em espírito é estar totalmente a serviço de Deus. É aderir a seu projeto, sendo livre, sem estar apegado às riquezas, ao poder, a seguranças. Ter espírito de pobre, de partilha e solidariedade é o oposto do espírito de consumismo e de acumulação de riquezas.
Dois são os caminhos fundamentais. Ou servimos aos tesouros da terra, ou nos colocamos a serviço dos tesouros dos céus (Mateus 6,19-21). Ser rico para Deus é partilhar, é ser solidário. Essa é a prática dos servos de Deus, prontos para viver na simplicidade, no desapego e na sobriedade.
Diferentemente, acontece numa estrutura econômica colocada a serviço da riqueza, dos tesouros da terra. Nosso texto usa a palavra mamona, traduzida por dinheiro, como símbolo máximo da riqueza. Mamona é todo o poder econômico que produz morte. É a riqueza acumulada, endeusada. É o olho que cobiça e que deseja bens para guardar em celeiros. Do aramaico, mamona é uma referência a toda riqueza idolatrada, tornada fetiche, isto é, qualquer objeto a que atribuímos poder sobrenatural ou mágico e lhe prestamos culto.
Esse é claramente o caso do dinheiro. Ele não passa de papel ou metal como tantos outros papéis ou metais. Acontece que nós atribuímos tamanho poder a pedaços de metal e de papel que eles acabam fazendo de nós os seus escravos. Rendemo-nos a um poder fictício, mas que nós tornamos real, a ponto de não sermos mais livres. Torna-se um ídolo que adoramos como nosso Deus. Temos a ilusão de que possuímos riquezas, quando na verdade são elas quem nos possui e nos governa. Não foi por acaso que as comunidades pós-paulinas escreveram: A raiz de todos os males é o amor ao dinheiro (1 Timóteo 6,10). Essa cobiça é a mãe de todos os males. A cobiça é idolatria (Colossenses 3,5; Deuteronômio 5,7.21). Paulo compreendeu isso muito bem. Por essa razão, quando lembra o Decálogo, diferentemente dos sinóticos (Marcos 10,19; Lucas 18,20; Mateus 19,18), Paulo faz questão de incluir o último mandamento (Romanos 13,9).
Jesus já tinha isso muito claro. Ele tinha consciência de que os dois projetos, o reinado de Deus e o reinado do dinheiro, são irreconciliáveis. Um gera violência, fome, injustiça. O outro promove ternura, dignidade e justiça. Por isso, Jesus disse: Não podeis servir a Deus e ao Dinheiro.
A nova justiça (Mateus 6,25-34)
Depois, Jesus passa a descrever as práticas do serviço a Deus. E o eixo dessa prática é a vivência da justiça do reinado de Deus, isto é, a vontade de Deus.
É interessante perceber que seis vezes o texto repete o verbo preocupar (tornar-se apreensivo, ter preocupação, afanar-se, estressar-se). De um lado, as pessoas que acumulam bens têm a preocupação de proteger-se contra carunchos, traças ou ladrões. Vivem preocupadas, encasteladas em suas fortalezas. Em sua ilusão, não vivem em paz. De outro lado, sabemos que uma sociedade que se estrutura para garantir, sob todos os meios, o acúmulo de propriedades e de bens é intrinsecamente injusta, causando miséria e violência. Dessa forma, também gera preocupação e angústia nas pessoas que não têm o que comer, o que beber ou com que se vestir.
Jesus sabe do significado do pão, da água e das vestimentas na vida do povo. Sabe também que o povo anda preocupado com o que comer, beber e se vestir. E igualmente tem consciência de que a questão vai além da luta pelas necessidades imediatas. Por isso, de um lado, convida a seguir o exemplo das aves, que rejeitam acumular em celeiros, e dos lírios do campo, que recusam o luxo dos poderosos, como Salomão. De outro, pede que confiemos no Pai celeste, pois ele sabe que tendes necessidade de todas estas coisas (Mateus 6,32).
Confiar em Deus e entregar-se à sua providência é uma atitude fundamental. Mas não é suficiente. Por isso, Jesus vai mais longe. Ele sabe que a fome é consequência de uma sociedade injusta que não quer partilhar. Para Jesus, o problema é sistêmico, estrutural. Certamente, as esmolas, uma forma de partilha, ajudam a minimizar a fome. Por isso, Jesus também recomenda dar esmolas, contanto que seja com gratuidade e sem esperar elogios ou recompensas (Mateus 6,2-4).
Mas esmolas não resolvem o problema na raiz. Não atingem a causa da pobreza, que é a injustiça social. E Jesus tinha consciência disso. Essa é a razão por que insiste em não consumir todas as energias na luta diária para satisfazer as necessidades básicas. Há uma luta maior. E essa luta é por um projeto de sociedade, de novas estruturas que garantam a todas as pessoas o acesso aos bens básicos para ter vida em abundância, vida digna. Por isso, Jesus nos convoca com um imperativo: Buscai, em primeiro lugar, o Reino de Deus e a sua justiça, e todas essas coisas vos serão acrescentadas (Mateus 6,33). É um projeto novo, com novas estruturas, mais justas, embora simples, sem roupas luxuosas, sem celeiros para acumular. Buscar o Reino de Deus e a sua justiça é viver como o próprio Deus, é imitar Deus. É viver em conformidade com sua vontade. Portanto, sede íntegros como vosso Pai celeste é íntegro (Mateus 5,48). Em outras palavras, sede amorosos como vosso Pai celeste é amoroso.
Então, já não precisaremos deixar-nos levar pela insegurança de um sistema injusto e gerador de morte, de preocupações sem conta. Assim, percebemos que confiar na providência divina não é um convite à acomodação. Essa confiança em Deus precisa ser mediada por nossa ação com vista a uma sociedade organizada na base da justiça.
Jesus recorda-nos de que as preocupações excessivas com comida, bebida e roupa, ou ainda outras coisas, impedem que desfrutemos cada momento da vida que Deus nos concede. Ele nos convida a espelhar-nos nas aves e nas plantas que não acumulam comida em celeiros, nem constroem armários para acumular roupas luxuosas. Deus cuida de todas elas e lhes providencia o necessário. É preciso confiar no amor de Deus e na solidariedade das pessoas. Então, não faz sentido a preocupação excessiva com o dia de amanhã. Nesse sentido, o texto nos convida a viver com o suficiente, na partilha. Mais que o bem estar no consumismo, é o bem viver na simplicidade. Convida-nos também a buscar o significado mais profundo da vida no que é essencial. E a essência é ocupar-se com o Reino de Deus e a sua justiça.
por Ildo Bohn Gass
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