sábado, 28 de janeiro de 2017

As bem-aventuranças (Mateus 5, 1 – 12) [Marcelo Barros]

O primeiro discurso dos cinco nos quais a comunidade de Mateus organiza as palavras de Jesus é o chamado “Sermão da Montanha” (Mt 5- 7). No mundo antigo, a montanha é considerada lugar sagrado. Conforme a Bíblia, Moisés subiu nove vezes à montanha do Sinai. Jesus também sobe à montanha, continuando o seu papel de “novo Moisés” (repitamos: não para substituir Moisés ou a lei judaica, mas para ampliá-la para todo o mundo e explicitá-la como boa notícia do reinado divino).
Carlos Mesters explica: “O Sermão da Montanha abre-se com oito bem-aventuranças. Elas são o portão de entrada deste e dos textos que seguem. Declaram felizes os pobres caracterizados de oito maneiras, pois neles o Reino de Deus já se faz presente como dom e graça de Deus no meio de nós e apesar de nós. Deste modo, as bem-aventuranças nos informam onde devemos olhar para descobrir os sinais da presença deste Reino no mundo em que vivemos” .  
Alguém chamou a atenção para o fato de que, apesar da tradição cristã sempre ter falado em oito bem-aventuranças, o texto repete nove vezes: “Felizes”. E, sendo nove, bem no meio está a bem-aventurança dos misericordiosos. De fato, a misericórdia, o amor fiel e compassivo de Deus é a manifestação mais própria de Deus e o modo de nos parecermos mais com Ele.
O primeiro salmo da Bíblia começa por esta palavra: “Feliz”, “Bendito”, ou “Bem-aventurado”. Faz parte da piedade judaica a Beraká, a bênção, como proclamação da vida em nome de Deus para as pessoas e o universo. “O termo (asherê) ocorre 45 vezes no texto hebraico da Bíblia. As proclamações de bênçãos (macarismos vem do termo grego “makarios”) são muito freqüentes em livros judaicos não bíblicos como o Apocalipse de Baruc, o IV livro de Esdras e outros”  .
Chouraqui rejeita a tradução que é tradicional em todas as versões: “Felizes”, ou “Bem-aventurados”. Ele mostra que, na base da tradução do hebraico para o grego, houve um engano de sentido das palavras e insiste em traduzir como: “Em marcha…”. De fato, etimologicamente ele tem, certamente, toda razão. Mas, me parece que o sentido das palavras evolui e um sentido engloba o outro. Quando, em português, alguém diz que está feliz pode estar dizendo: “Estou progredindo!” (no caminho, nas finanças, ou no plano interior).  
Como um pobre rabino itinerante que quer ajudar o povo a renovar a aliança com Deus, Jesus traz uma novidade imensa: parece que nenhum outro texto antigo sublinha tanto a gratuidade da proclamação do Reino. Enquanto os textos apocalípticos dizem: “Felizes os que temem ao Senhor, felizes os que fazem julgamentos justos”, Jesus acentua a gratuidade do reinado divino e abre essa felicidade do reino a todos, principalmente aos excluídos do mundo e do próprio sistema religioso (qualquer que ele seja).  
A maior produção do mundo atual é a exclusão de milhões de pessoas. Jesus começa a proclamação do reinado divino se dirigindo a eles e lhes prometendo que pela vinda deste reino se acabarão as injustiças responsáveis pela marginalização deles.
As promessas são o resumo de todas as promessas bíblicas. O reino vem para as pessoas pobres. Então, quem chora será consolado/a, quem tem fome será saciado/a, as pessoas que têm fome e sede de justiça serão satisfeitas. Por quem? Por Deus. O fato de falar sempre no passivo (“serão”) é sinal de que vocês estão falando de uma ação divina. Na América Latina, essas promessas têm sustentado a esperança de muitos irmãos e irmãs dos quais um bom número deu a vida pelo reino. E estas promessas se realizam, não porque essas pessoas (pobres, famintas ou as que choram) sejam boas ou justas, mas porque Deus as ama e não aceita que continuem sofrendo. É significativo que a proclamação do reino comece pela indicação de caminhos para a felicidade: “felizes”, ou “benditas”…

As bem-aventuranças: Eu sou feliz é na comunidade! (MATEUS 5.1-12) [Mesters, Lopes e Orofino]

OLHAR A PRÁTICA DA NOSSA COMUNIDADE
Hoje vamos meditar sobre o começo do "Sermão da Montanha". Certa vez, vendo aquela multidão imensa de gente que o seguia, Jesus subiu num pequeno morro para que todos pudessem vê-lo e ouvi-lo. Sentado lá no alto e olhando o povo, ele disse: "Felizes os pobres". Estas palavras de Jesus fazem a gente pensar e se perguntar: "O que é mesmo a felicidade? Quem é realmente feliz?" Vamos conversar sobre isto.

SITUANDO
Aqui no capítulo 5, Jesus aparece como o novo legislador. Sendo Filho, ele conhece o Pai e o objetivo que ele, o Pai tinha em mente quando, séculos atrás, deu a Lei ao povo pela mão de Moisés. Por isso, Jesus pode nos oferecer uma nova versão da lei de Deus. O solene anúncio da Nova Lei começa aqui no Sermão da Montanha.
No Antigo Testamento, a Lei de Moisés é apresentada em cinco livros: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio. Imitando o modelo antigo, Mateus apresenta a Nova Lei que revela o sentido desta Lei. As partes narrativas, intercaladas entre os cinco Sermões, descrevem a prática de Jesus e têm como objetivo mostrar como Jesus observava a Lei e a encarnava em sua vida.

COMENTANDO
Mateus 5.1: O solene anúncio da Nova Lei
Havia apenas quatro discípulos com Jesus. Pouca gente. Mas uma multidão imensa estava à sua procura. No AT, Moisés subiu o Monte Sinai para receber a Lei de Deus. Como Moisés, Jesus sobe a Montanha e, olhando o povo, proclama a Nova Lei.
Mateus 5.3-10: As oito portas de entrada do Reino
São oito categorias de pessoas, oito portas de entrada para o Reino, para a Comunidade. Não há outras entradas! Quem quiser entrar terá que identificar-se com uma dessas oito categorias
1. os pobres de espírito                              1. deles é o Reino dos Céus
2. os mansos                                               2. herdarão a terra (bens)
 3. os aflitos                                                  3. serão consolados (bens)
 4. os com fome e sede de justiça                4. serão saciados (pessoas)
 5. os misericordiosos                                  5. obterão misericórdia (pessoas)
 6. os de coração limpo                                6. verão a Deus (Deus)
 7. os promotores da paz                            7. serão filhos de Deus (Deus)
 8. os perseguidos por causa da justiça      8. deles é o Reino dos Céus
A primeira e a última categoria recebem a mesma promessa: o Reino dos Céus. E a recebem desde agora, pois Jesus diz "deles é o Reino dos Céus!" Entre estas duas categorias, há três duplas às quais é feita uma promessa no futuro: 2 e 3: mansos e aflitos: dizem respeito ao relacionamento com os bens materiais, terra e consolo; 4 e 5: Fome e sede de justiça e misericordiosos: dizem respeito ao relacionamento com as pessoas na comunidade: justiça e solidariedade; 6 e 7: Coração limpo e promotores da paz: dizem respeito ao relacionamento com Deus: ver a Deus e ser chamado filho de Deus.
Em outras palavras, o Projeto do Reino, apresentado por Jesus nas bem-aventuranças, quer reconstruir a vida na sua totalidade: no seu relacionamento com os bens materiais, com as pessoas entre si e com Deus. No tempo de Mateus, este projeto estava sendo assumido pelos pobres e estes, por causa disso, estavam sendo perseguidos.
 

A salvação que Jesus nos trouxe é para todos! (Mateus 4.12-25) [C. Mesters, M. Lopes e F. Orofino]

1 SITUANDO
Nos capítulos 1 e 2, Mateus apresentou a origem de Jesus, o novo Legislador. Aqui nos capítulos 3 e 4, descreve os preparativos para o solene anúncio da Nova Lei que vai começar no capítulo 5. Os preparativos são estes: Jesus é apresentado ao povo por João Batista (Mt 3.1-12) e cumpre todas as exigências legais (Mt 3.13-15). Na hora do batismo, o próprio Deus o apresenta como o “Messias Servo”, anunciado pelo profeta Isaías, e Jesus recebe a plenitude do Espírito (Mt 3.16-17). Em seguida, levado ao deserto, vence a tentação do diabo (Mt 4.1-11). Assim preparado, ele volta para a Galileia como uma luz que rasga os céus e ilumina a terra (Mt 4.15-16), anunciando a Nova Lei.
As comunidades para as quais Mateus escreveu o seu Evangelho viviam numa situação de trevas e de muitas angústia e tentação. Havia comunidades bem pequenas de duas ou três famílias (Mt 18.20). Elas não eram reconhecidas pelos irmãos judeus. Entrar na comunidade trazia riscos e perseguições. Além disso, havia tensões internas muito fortes. Não era claro para elas o caminho a seguir. Havia muitas opiniões e tendências. Havia incertezas até sobre a pessoa própria de Jesus. O texto sobre o qual estamos meditando, ajudou as comunidades a enfrentarem e superarem as dificuldades.

2 COMENTANDO
Mateus 4.12-17: João e Jesus anunciam a mesma mensagem
É a notícia da prisão de João Batista que leva Jesus iniciar a pregação. João tinha dito: “Arrependei-vos, porque o Reino de Deus está próximo!” (Mt 3.2). Por causa disso, ele foi preso por Herodes, que governava a Galileia. Quando Jesus soube que João foi preso, voltou para a Galileia e retornou a mesma mensagem de João: “Arrependei-vos, porque o Reino de Deus está próximo!” (Mt 4.17). Em outras palavras, desde o início, a pregação do Evangelho traz riscos. Mas Jesus não volta atrás. Desse modo, Mateus anima as comunidades que estavam assumindo os mesmos riscos de perseguição. E ele cita o texto tão bonito de Isaías: “O povo que jazia nas trevas viu uma grande luz!”. Como Jesus, as comunidades eram chamadas a ser “Luz dos povos”.
Mateus 4.18-22: A primeira comunidade
Jesus caminha pela praia e chama quatro pessoas para segui-lo. É a primeira comunidade. Pouca gente. Só quatro pessoas. Um começo insignificante, como eram insignificantes as pequenas comunidades da época de Mateus. Grupinhos de poucas famílias (Mt 18.20), mas eram aqueles pequenos grupos que espelhavam pelo mundo a Luz dos povos.
Mateus 4.23-25: O jeito de Jesus anunciar a Boa Nova. Missão universal desde o início
Jesus começa o anúncio de Boa Nova andando por toda a Galileia. Ele não fica parado, esperando que o povo chegue. Ele mesmo vai às reuniões do povo, às sinagogas, para anunciar sua mensagem. O povo leva e ele os doentes, os endemoninhados, e ele acolhe as todos e cura-os. Este serviço aos doentes faz parte da Boa Nova e revela ao povo a presença do Reino. Assim, a fama de Jesus se espalha por a toda a região, atravessa as fronteiras da Galileia, penetra na Judeia, chega até Jerusalém, vai para o além- Jordão e alcança a Síria e a Decápole. Era exatamente aqui, nestas mesmas regiões, que se encontravam as comunidades para as quais Mateus estava escrevendo o seu Evangelho. Agora, elas ficam sabendo que, apesar de todas as dificuldades e riscos, são a luz que brilha nas trevas.
3 ALARGANDO
A salvação que Jesus nos trouxe é para todos!
O Evangelho de Mateus tem uma preocupação em mostrar que a salvação trazida por Jesus não é só para os judeus, mas para toda a humanidade. Na genealogia, o evangelista já indica para os judeus, mas para toda a humanidade. Na genealogia, o evangelista já indica a vocação universal de Jesus: como Filho de Abraão ele é fonte de bênção para todas as nações do mundo (Mt 1.1.17). Na visita dos magos, vindos do Oriente, Mateus mostra que a salvação se dirige aos pagãos. Atraídos pela estrela, eles saíram à procura de Jesus (Mt 2.1-12). No texto de nosso estudo, ele mostra como a luz brilha tanto na Galileia como fora das fronteiras de Israel, na Síria, na Decápoles e no além do Jordão (Mt 4.12-25).
 
Mais adiante, no Sermão da Montanha, Jesus diz que a vocação da comunidade cristã é ser “sal e luz do mundo” (Mt 5.13-14) e pede amor aos inimigos (Mt 5.43-48). Jesus é o Servo de Deus que anuncia o direito as Nações (Mt 12.18). Ultrapassa também as leis de pureza que impediam a acolhida do Evangelho por parte dos pagãos (Mt 15.1-20). E no final, quando Jesus envia seus discípulos a todas as Nações, fica ainda mais clara a universalidade da salvação (Mt 28.19-20). Este é também o caminho da comunidade: abrir-se para todos, sem excluir ninguém, pois todos são filhos e filhas de Deus, chamados a viver, desde agora, as bem-aventuranças do Reino.

Os muitos caminhos de Deus [Marcelo Barros]

Os muitos caminhos de Deus [Marcelo Barros]
Uma das características do mundo atual é a convivência entre diversas culturas. Por isso, também um dos maiores desafios é a convivência e colaboração entre diferentes religiões. Antigamente, os poderosos de cada região impunham a sua religião a todos os habitantes do território que dominavam. Hoje, graças a Deus, o mundo inteiro é uma grande sinfonia de diferentes culturas e religiões. Há muitos fieis muçulmanos na Índia, muitos crentes do Hinduísmo nos países árabes, cristãos na China e seguidores do Taoísmo no Brasil. Infelizmente, o fanatismo religioso e o fundamentalismo ainda provocam intolerância e preconceito entre religiões diferentes.
  
No Rio de Janeiro, em janeiro do ano 2000, duas vezes, Mãe Gilda, sacerdotisa do Candomblé, viu o seu templo ser invadido por pessoas de uma Igreja neopentecostal. Elas invadiram o lugar e destruíram os assentamentos dos Orixás. Poucos dias depois, Mãe Gilda viu estampada no jornal “A Folha Universal”, uma foto sua com a legenda: “Macumbeiros ameaçam a vida e o bolso dos clientes”. Ao ver aquilo, aquela senhora idosa teve um infarto e faleceu. Para que não se repitam mais fatos como esse, em 2007, uma portaria do presidente Lula determinou que, a cada ano, em todo o Brasil, o 21 de janeiro seja celebrado como o “Dia Nacional contra a Intolerância Religiosa”.
Para vencer a intolerância cultural e religiosa, não basta uma lei ou decreto. É preciso que as pessoas se convençam de que não existe fé na intolerância e no desamor. Ou nos transformamos interiormente ou nossa religião é meramente externa e vazia. A fé é um processo permanente de abertura interior para descobrir no outro ser humano e na natureza a presença divina. Foi isso que Jesus ensinou no evangelho e que, cinco séculos antes, Buda havia pregado em seus sermões. É isso que ensinam todas as grandes religiões da humanidade.
Algumas pessoas que se consideram religiosas ainda confundem a verdade com uma forma cultural de expressá-la. Por isso, absolutizam dogmas e se fecham em um autoritarismo fundamentalista e superficial. Daí, facilmente, se justificam conflitos e até guerras em nome de Deus. Em 1965, em um dos seus mais belos documentos, (a declaração Nostra Aetate), o Concílio Vaticano II proclamava o valor das outras religiões e incentivava os católicos do mundo inteiro ao respeito ao diferente e ao diálogo. Também, em 1961, o Conselho Mundial de Igrejas, que reúne mais de 340 confissões cristãs, pediu às Igrejas-membros uma atitude de respeito e diálogo com todas as culturas e colaboração com outras tradições religiosas.
Atualmente, a diversidade religiosa no mundo é, não somente um fato atual que, queiramos ou não, se impõe à humanidade. Ela se constitui como graça divina e uma bênção para as tradições religiosas que, assim, podem se complementar e mutuamente se enriquecer. Para que esse diálogo seja verdadeiro e profundo, cada grupo religioso tem de reconhecer o elemento de verdade que existe no outro.
Em 1994, no Vaticano, a Congregação da Doutrina da Fé e a Comissão Pontifícia para o Diálogo Inter-religioso publicaram um documento em comum chamado "Diálogo e Anúncio". Esse documento ensina que os cristãos valorizam todas as outras religiões porque creem que todas contêm verdades reveladas por Deus. Assim, nós nos tornamos melhores cristãos à medida que nos abrimos ao que Deus nos revela, não somente na Bíblia e em nossa tradição, mas também ao que ele quer nos dizer através das outras religiões. Isso em nada diminui o valor próprio da nossa fé. Ao contrário, a enriquece. Abrir-nos a outras religiões não significa aderir a elas. Somos chamados a, como cristãos, sermos testemunhas do amor universal de Jesus que "veio a todo ser humano que vive nesse mundo". No evangelho, na hora de se despedir dos discípulos, Jesus afirmou: "Na casa do meu Pai, há muitas moradas". Ele não disse que, no céu, há muitas casas preparadas para nós, quando morrermos. O sentido profundo da palavra de Jesus é que "a casa do Pai" é esse mundo mesmo e as muitas moradas de Deus são as diversas formas de caminhar para o seu reino. Ele peregrina conosco. As religiões são tendas armadas no caminho para nos ajudar a avançar em sua direção.   

A Bíblia em Poesia (versos 135-139) [Adelino Torres]

135.
A Bíblia espelho da gente,
na sua orientação,
mostra hoje outro império
com sua perseguição.
Mas nele existem cruéis
que escravizam o povão.
136.
A Igreja então criada
firmou-se na oração,
direito, respeito e vida,
busca de libertação.
É a fé no Cristo vivo
contra a alienação.
137.
Lucas, o autor dos Atos,
mostra em sua narração
a força do cristianismo
com milagre e conversão,
a alegria da fé
e a dor da perseguição.
138.
Atos é luz e esperança.
Não é um fato passado.
Hoje serve como base
do povo desrespeitado,
questiona a burguesia
que cria assalariado.
139.
Vale dizer ao leitor:
Há muito o que aprender.
Atos é a base
para quem busca viver
o pensamento de um jovem
que o mundo quis esquecer.

Jesus se aproxima de nós [Ana Maria Casarotti]

No dia seguinte, João viu Jesus, que se aproximava dele. E disse: “Eis o Cordeiro de Deus, aquele que tira o pecado do mundo. Este é aquele de quem eu falei: 'Depois de mim vem um homem que passou na minha frente, porque existia antes de mim.' Eu também não o conhecia. “Mas vim batizar com água, a fim de que ele se manifeste a Israel.”
E João testemunhou: “Eu vi o Espírito descer do céu, como uma pomba, e pousar sobre ele. Eu também não o conhecia. Aquele que me enviou para batizar com água, foi ele quem me disse: 'Aquele sobre quem você vir o Espírito descer e pousar, esse é quem batiza com o Espírito Santo.' E eu vi, e dou testemunho de que este é o Filho de Deus.”
Leitura do Evangelho de João 1,29-34. (Correspondente ao 2° Domingo do Tempo Comum, ciclo do A do Ano Litúrgico.)

O comentário é de Ana Maria Casarotti.
Jesus se aproxima de nós
No texto do Evangelho que lemos hoje, Jesus aparece já adulto. Mas, por que não sabemos nada da infância de Jesus?
No Antigo Testamento não temos dados sobre os primeiros anos das grandes figuras, além de alguma pequena narrativa. Essas pessoas são importantes pela sua contribuição na história de Salvação. Lembremos, por exemplo, Abraão, Moisés, Josué, assim como alguns profetas.
A narrativa sobre sua vida começa no momento que se inicia sua missão, quando a pessoa responde ao projeto de Deus. É assim que acontece com Jesus!
Imaginemos a cena que narra este texto.
Estamos no meio da multidão que procura João Batista. Fazemos parte desse grupo de pessoas que desejam que sua vida mude, que o Messias os liberte das opressões que estão sofrendo.
E procuramos esse batismo de conversão que oferece João.
Num momento “João viu Jesus, que se aproximava dele” e depois continua, dizendo: “Eis o Cordeiro de Deus, aquele que tira o pecado do mundo”.
Jesus é apresentado por João como aquele que traz a libertação de tudo aquilo que oprime as pessoas, seja um sistema político, econômico, social ou também as opressões que cada um carrega no silêncio…
E aparece Jesus como alguém que vem para nos libertar, para quitar tudo isso que não nos deixa viver em liberdade!
Como João Batista, devemos reconhecer sua presença que traz para nossa vida a liberdade desejada. Mas para isso é preciso "ver o mundo através dos olhos dos pobres e colaborar com eles para fazer crescer a vida verdadeira", como nos convida o P. Arturo Sosa, Padre Geral dos Jesuítas.
João Batista deu testemunho de Jesus dizendo que “Aquele que me enviou para batizar com água, foi ele quem me disse: 'Aquele sobre quem você vir o Espírito descer e pousar, esse é quem batiza com o Espírito Santo.' E eu vi, e dou testemunho de que este é o Filho de Deus.”
Que significa ser batizado com o Espírito Santo? Ser submergido de novo nas águas?, como se pergunta Nicodemo quando vai ao encontro de Jesus à noite (Jo 3).
Muitos cristãos receberam o Batismo quando eram pequenos e outras pessoas tomaram essa decisão. Possivelmente também aconteceu isso com cada uma e cada um de nós.
Mas, hoje, somos convidados a tomar uma decisão!
Olhemos nosso mundo e nele tantas pessoas que, vítimas da opressão e da injustiça, morrem de fome ou não têm onde viver.
Peçamos ao Espírito ser batizados com sua presença. Que seu fogo arda em nossa vida e transforme nosso olhar para reconhecer a presença de Jesus, que continuamente está “vindo até nós”.

Com o fogo do Espírito [José Antonio Pagola]

O Evangelho segundo João 1, 29-34, 
Eis o texto
As primeiras comunidades cristãs preocuparam-se em diferenciar bem o batismo de João, que submergia as pessoas nas águas do Jordão, e o batismo de Jesus, que comunicava seu Espírito para limpar, renovar e transformar o coração dos seus seguidores. Sem esse Espírito de Jesus, a Igreja apaga-se e extingue-se.
Só o Espírito de Jesus pode colocar mais verdade no cristianismo atual. Só o Seu Espírito pode nos conduzir a recuperar nossa verdadeira identidade, abandonando caminhos que nos desviam uma e outra vez do Evangelho. Só esse Espírito pode nos dar luz e força para empreender a renovação que necessita hoje a Igreja.
O papa Francisco sabe muito bem que o maior obstáculo para colocar em marcha uma nova etapa evangelizadora é a mediocridade espiritual. Ele o diz de uma forma categórica. Deseja alentar com todas suas forças uma etapa “mais ardente, alegre, generosa, audaz, cheia de amor até o fim, e de vida contagiosa”. Mas tudo será insuficiente “se não arde nos corações o fogo do Espírito”.
Por isso procura para a Igreja de hoje “evangelizadores com Espírito” que se abram sem medo à sua ação, e encontrem nesse Espírito Santo de Jesus “a força para anunciar a verdade do Evangelho com audácia, em voz alta e em todo o tempo e lugar, inclusive contra a corrente”.
Segundo o papa, a renovação que quer impulsionar no cristianismo atual não é possível “quando a falta de uma espiritualidade profunda se traduz em pessimismo, fatalismo e desconfiança”, ou quando nos leva a pensar que “nada pode mudar” e, portanto, que “é inútil esforçar-se”, ou quando baixamos os braços definitivamente, “dominados por um descontentamento crônico ou por uma apatia que seca a alma”.
Francisco adverte-nos que “às vezes perdemos o entusiasmo ao esquecer que o Evangelho responde às necessidades mais profundas das pessoas”. No entanto, não é assim. O papa expressa, com força, sua convicção: “Não é o mesmo ter conhecido Jesus que não conhecê-Lo, não é o mesmo caminhar com Ele que caminhar a esmo, não é o mesmo poder escutá-Lo que ignorar sua Palavra […] não é o mesmo tratar de construir o mundo com seu Evangelho que fazê-Lo sozinho, apenas com a própria razão”.
Tudo isto, temos de descobri-lo por experiência pessoal de Jesus. Do contrário, diz o papa, a quem não O descobre, ”depressa lhe falta força e paixão; é uma pessoa que não está convencida, entusiasmada, segura, apaixonada, não convence ninguém”. Não estará aqui um dos principais obstáculos para impulsionar a renovação pretendida pelo papa Francisco?

Somos habitados pelo Espírito [Adroaldo Palaoro]


“Eu vi o Espírito descer, como uma pomba do céu, e permanecer sobre ele” (Jo 1,32)
Estamos iniciando o tempo litúrgico conhecido como “Tempo comum”; tempo para um longo e demorado olhar centrado na pessoa de Jesus: “ver” e “mirar” nos conduzem a uma identificação com Ele. Do olhar correspondido brota o seguimento.
A reflexão bíblica é de Adroaldo Palaoro, padre jesuíta, comentando o evangelho do 2º Domingo do Tempo Comum (15/01/2017) que corresponde ao texto de João 1,29-34.
Como seguidores(as) de Jesus, também vivemos à luz do Espírito, não à sua sombra. Nossa existência, em sintonia com o desejo de Deus para que vivamos em plenitude, é enriquecida pelos nossos desejos profundos de nos constituir como seres livres, ou seja, capacitados a tomar decisões oblativas, desafiados permanentemente por uma pluralidade de opções abertas que se apresentam diante de nós. Não somos escravos de nossa pobre condição mortal, mas o espaço livre por onde habita e transita o Espírito.
No evangelho de hoje, mais uma vez o autor do quarto Evangelho nos coloca diante da figura de João Batista, relatando a experiência dele de encontro com Jesus e revelando-o como aquele que “viu” e que “deu testemunho” de que Jesus é “o Filho de Deus”.
Daí sua insistência no verbo “ver”. Não se trata de um “ver” neutro, preso à exterioridade, mas de um olhar contemplativo, capaz de distinguir e apontar quem de fato era o Messias.
João não recebeu o encargo de divulgar uma ideia, uma doutrina… mas apontar uma pessoa.
Como nos evangelistas sinóticos, também o evangelista João faz do batismo de Jesus o acontecimento fundante com o qual Ele inicia sua atividade pública.
Que é que João Batista “viu”? Viu um homem cheio de Espírito. Ou seja, Jesus é aquele que, habitado pelo Espírito, se deixa conduzir pelo mesmo Espírito. Ele deixa “transparecer” esta presença do Espírito e só quem tem olhar contemplativo é capaz de perceber quem O move.
Sempre quando temos a sorte de encontrar uma pessoa “transparente” (não “perfeita”, mas humana), torna-se mais fácil reconhecer, apreciar, “ver” o Mistério que a habita.
Mas não é suficiente encontrar-nos com alguém assim; é preciso também desenvolver a própria “capacidade de ver”, ou seja, um “saber olhar” que transcende para além das aparências.
Os sábios sempre foram conscientes de que existem diferentes níveis de realidade aos quais podemos ter acesso através de diferentes órgãos de conhecimento. São Boaventura fala do “olho do espírito”, ou seja o “olho da contemplação”.
Empobrecemo-nos quando nos reduzimos ao “olho da carne” e também ao “olho da razão”.
Precisamos ativar o “olho do espírito” que nos capacita para “ver” a realidade em sua dimensão mais profunda, para perceber o Mistério em tudo o que nos rodeia, nós incluídos.
A qualidade humana, o futuro da humanidade e do planeta depende de que saibamos “ver” deste modo.
Nossa experiência do seguimento de Jesus brota da capacidade de fixar nosso olhar n’Ele. De fato, o olhar é o primeiro sentido que nos faz sentir presentes junto ao outro. E, como João Batista, ao fixar nosso olhar contemplativo na pessoa de Jesus, o que vemos é o Espírito agindo n’Ele.
E porque se deixa conduzir pelo Espírito, Jesus não suporta lugares fechados, rompe com os “espaços sagrados”, com os esquemas fechados, com as estruturas arcaicas… O Espírito é “movimento” e Jesus inicia um movimento de vida e vida plena.
Jesus, cheio do Espírito, sempre foi o homem das praças, ruas, caminhos e campos abertos… Não foi o homem dos templos, dos lugares fechados, das cidades fortificadas, mas o “homem em saída”, revelando sua mensagem e sua missão ao ar livre da vida.
A comunidade dos seus seguidores, conduzida pelo Espírito, também não se deixa atrofiar pelos lugares fechados, cheirando a incenso mofado, nem se prende a um ritualismo e religiosidade alienante, mas é aquela que sai para os espaços públicos e ali oferece o testemunho de Jesus.
Somos seguidores de Jesus nos espaços amplos da vida, sem distinção de classes, sem hierarquias, onde todos podem comunicar-se com todos, pois são habitados pelo mesmo Espírito, a força da vida.
A novidade de Jesus consiste justamente em afirmar que existe um caminho para encontrar a Deus que não passa pelo Templo. Desse modo, reconhece-se a vida como lugar privilegiado da Sua Presença.
Jesus, na Galileia, encontrou os seus lugares: junto ao mar, nas estradas poeirentas, nas margens…
Depois do seu batismo e pleno do Espírito, Jesus se faz presente no lugar onde se encontram aqueles que não tem “lugar”, os “deslocados” e que são a razão de seu amor e do seu cuidado; faz-se solidário com os “sem lugares” e os convida a caminhar para um novo lugar. Na Galileia, Jesus tem suas preferências e escolhe o seu “lugar”, o lugar entre os mais pobres, vítimas daqueles que se fazem donos dos lugares.
O(a) seguidor(a) de Jesus não é aquele que, por medo, se distancia do mundo, mas é aquele(a) que, movido(a) por uma radical compaixão, desce ao coração da realidade em que se encontra, aí se encarna e aí revela os traços da velada presença d’Aquele que é a Misericórdia.
Dessa forma, “habitado pelo Espírito”, experimenta que a vida é forte e formosa e que vale a pena acolhê-la e doá-la, como Jesus fez, sabendo que o tempo da opressão, da enfermidade, da morte e da condenação… não tem a última palavra.
Esse é o sentido da expressão de João Batista aplicada a Jesus: “Aquele que tira o pecado do mundo”.
Por isso, Jesus e os primeiros cristãos não usaram modelos de poder centralizado para cultivar a presença de Deus. Nem tiveram a preocupação de construir um novo templo, nem formatar uma nova religião, mas descobriram o Templo de Deus na vida mesma, no diálogo e no encontro das pessoas nos espaços públicos, onde sob o impulso do Espírito, buscaram inspiração e sentido para suas existências.
E a vida não é um templo já construído mas uma rede de conexões múltiplas que vão se refazendo, recriando, de um modo incessante, por obra do Espírito de Cristo.
A presença provocativa e o chamado exigente de Jesus colocam em questão nosso costume de nos refugiar no mundo asséptico das doutrinas, na tranquilidade de uma vida ordenada e legalista, satisfatória e entorpecida, na segurança de horários imutáveis e de muros de proteção, longe do rumor da vida que luta para ter um lugar ao sol, dos gritos daqueles que sofrem e morrem nas periferias deste mundo.
Escutar e seguir Seu chamado implica abandonar a estreiteza de nossos caminhos e deixar o nosso coração bater no ritmo do Espírito que nos faz romper nossos estreitos lugares e nos projeta em direção ao mundo dos doentes e marginalizados, vítimas da desumanização de nossa sociedade.
Como Igreja, temos perdido esse estilo itinerante que Jesus propõe. O caminhar dela é lento e pesado; não acertamos o passo para acompanhar a humanidade; não temos agilidade para deslocar-nos em direção à margem sofredora; agarramos ao poder e às estruturas que tiram a mobilidade; enredamos nos interesses que não coincidem com o Reinado de Deus. É preciso uma profunda conversão e voltar à essência do Evangelho: compromisso com a vida, sendo presença misericordiosa.
Para meditar na oração
“Fazer caminho” com Jesus implica sair pelas estradas e encruzilhadas para escutar o clamor das pessoas e para alargar a nossa vida no contato com elas. A novidade do Espírito aparece sempre fora dos lugares seguros, protegidos e convencionais.
Não estaremos desperdiçando as nossas melhores forças para conservar atitudes arcaicas e nos deliciamos com um estilo de vida que nos atrofia?
Não chegou, talvez, o momento de deixar de repetir aquilo que fazíamos antes, e de abrir-nos àquilo que está diante de nós, à novidade que o Espírito está criando?

Uma projeção linear da transição religiosa no Brasil: 1991-2040 CEBI


"Evidentemente, ninguém sabe, com certeza, como será o dia de amanhã. Mas as indicações atuais apontam para um Brasil, no futuro, menos católico, mais evangélico e com maior pluralidade religiosa (inclusive com maior presença das pessoas que se declaram sem religião)", escreve José Eustáquio Diniz Alves, doutor em demografia e professor titular do mestrado e doutorado em População, Território e Estatísticas Públicas da Escola Nacional de Ciências Estatísticas – ENCE/IBGE, em artigo publicado por EcoDebate, 11-01-2017.
Eis o artigo.
O Brasil está passando por uma grande transformação na sua moldura religiosa. Os católicos continuam como o grupo majoritário, mas perdem espaço em termos absoluto e relativo. Os evangélicos, em sua multiplicidade e diversidade, é o grupo que mais cresce. Mas também tem aumentado as demais denominações não cristãs e o número de pessoas que se declaram sem religião. Isto quer dizer que o Brasil está passando por uma mudança de hegemonia entre os dois grupos cristãos (católicos e evangélicos), ao mesmo tempo em que aumenta a pluralidade religiosa, pois cresce e diversifica a proporção das filiações não derivadas do cristianismo. Este processo ocorre em todo o território nacional, mas em ritmos diferentes nas escalas espacial e social. Porém, uma coisa é clara: pluralidade gera pluralidade, pois quanto mais diversificadas são as opções religiosas (incluindo os sem religião) mais rápido é a diminuição da proporção de católicos.
Os católicos agregavam quase 100% dos brasileiros antes da Proclamação da República, em 1889. Esta proporção caiu ligeiramente nas oito décadas seguintes, mas os católicos ainda eram ampla maioria em 1970, quanto representavam 91,8% da população. A partir daí a queda se acelerou e chegou a 83% em 1991. A diminuição foi de 8,8% em 21 anos. Mas o pior viria entre 1991 e 2010, pois a perda foi de 18,4% em 19 anos. Isto representou quase um por cento de perda ao ano (-0,97%). Os católicos são doadores universais. Para cada 100 pessoas que deixaram de ser católicos, 72 foram para as filiações evangélicas, 18 para os sem religião e 10 para as outras religiões não cristãs.
Se a tendência da transição religiosa ocorrida no período 1991 a 2010 continuar, pode-se fazer uma projeção linear até 2040, com os católicos perdendo 0,97% aa, os evangélicos ganhando 0,69% aa, os sem religião ganhando 0,17% aa e as outras denominações aumentando 0,1% aa. O resultado pode ser visto no gráfico 1, quando em 2036, os evangélicos (em sua multiplicidade), com 40,3%, ultrapassarão os católicos, com 39,4%. Em 2040, os católicos teriam 35,5% e os evangélicos teriam 43%. Os cristãos (católicos + evangélicos) passariam de 92% em 1991, para 86,8% em 2010 e cairiam para 78,6% em 2040. Portanto, este quadro caracteriza bem a transição religiosa, com mudança de hegemonia entre os dois maiores grupos e aumento da pluralidade (queda da percentagem de cristãos).
Mas há quem discorde deste cenário. O sociólogo Paul Freston, considera que a queda dos católicos tem um piso e a subida dos evangélicos tem um teto. Ele diz: “Pelas tendências atuais, o futuro previsível da religião no Brasil vai depender de três fatores. Em primeiro lugar, o catolicismo continua a declinar (perde cerca de 1% da população anualmente), mas haverá um limite nesse declínio. Há um núcleo sólido de católicos praticantes, pelo menos 25% da população, que dificilmente vai ser erodido. Além disso, se a Igreja Católica conseguir se organizar melhor e fazer frente à concorrência, é improvável que fique abaixo de 40%. Em segundo lugar, atualmente, de cada duas pessoas que deixam de se considerar católicas, apenas uma passa a ser evangélica. A outra adere a uma outra religião, ou se torna ‘sem religião’. Em terceiro lugar, o resto do campo religioso está muito pulverizado, e não há sinais de uma ‘terceira força’ religiosa. O resultado de tudo isso é que, “a continuarem as tendências atuais”, nunca haverá uma maioria evangélica no Brasil. O mais provável é que a população evangélica não passe de uns 35%, na melhor das hipóteses. Teríamos, então, o seguinte cenário: 40% de católicos, 35% de evangélicos, e 25% de outras religiões e de pessoas ‘sem religião’” (2009, p. 2).
Porém, esta hipótese de haver um limite ao processo de transição religiosa não apresenta argumentos convincentes e não se sustenta nas evidências empíricas. Como mostram Alves, Cavenaghi e Barros (2014): “A cidade de Seropédica, é um exemplo de rápida mudança religiosa. Até o início dos anos de 1990, Seropédica fazia parte do município de Itaguaí. No censo demográfico de 1991, Itaguaí tinha 55% de pessoas que se declaravam católicas e 21% de evangélicos. Em Seropédica, houve quase um empate no ano 2000, com os evangélicos atingindo 35,9% e os católicos 38,8%. As outras religiões perfaziam um percentual de 5,3% e os sem religião 20,1%. Na primeira década do século XXI a mudança continuou de maneira acelerada entre a população total do município, com os católicos caindo para 27,4% em 2010, os evangélicos subindo para 44%, as outras religiões para 6,3% e os sem religião subindo para 22,3%. Portanto, entre 1991 e 2010, os católicos de Seropédica caíram de mais de 50% para cerca de um quarto (25%). Foi uma perda muito acelerada e parece que não vai ser interrompida imediatamente, pois os católicos estão mais representados entre os idosos e os evangélicos mais representados entre as mulheres em período reprodutivo e as novas gerações. Independentemente da migração inter-religiosa, haverá mudança apenas por conta da inércia demográfica e da sucessão de gerações” (p. 1078).
Em outras cidades fluminenses, como Japeri e Queimados, os católicos já estavam abaixo de 30% e os evangélicos acima de 40%. Nas grandes cidades, como Nova Iguaçu e Duque de Caxias, os evangélicos já estão acima dos 35% e ultrapassaram os católicos. Em Paty do Alferes os evangélicos passaram de 33% em 2000 para 46,2% em 2010. Assim, independentemente do trânsito religioso, os evangélicos devem continuar crescendo por conta de estarem mais representados entre as mulheres e os jovens, tornando a transição religiosa uma realidade.
O IBGE não fez nenhuma pesquisa sobre religião na atual década. Mas existem outras pesquisas que apontam para a continuidade da transição religiosa. Pesquisa encomendada à Universidade Municipal de São Caetano pela Diocese de Santo André para diagnosticar a transformação do Grande ABC e sua população desde os anos 1960 até agora, apontou que a Igreja Católica vem gradativamente perdendo fiéis. Cinquenta e seis anos atrás, dos 499.398 moradores da região, 90,7% eram católicos. Em 2010, das 2,5 milhões de pessoas, 56,5% se declararam seguidoras do catolicismo e, neste ano, elas representam 46,8% em universo de 2,7 milhões de habitantes. Portanto, os católicos perderam quase 10 pontos em apenas 6 anos. O que mostra que a transição está se acelerando e não se reduzindo (Oliveira, 07/12/2016).
Pesquisa Datafolha, divulgada no dia de Natal (25/12/2016), mostra que a percentagem de católicos caiu de 63% em 2010 para 50% em 2016, os evangélicos subiram de 24% para 29%, os sem religião de 6% para 14% e as outras denominações ficaram constante em 7%, no mesmo período, segundo a Datafolha. Entre 1994 e 2016 a perda dos católicos tem sido de 1,14% ao ano, superior ao que aponta os censos demográficos do IBGE (em outro artigo vamos tratar das pesquisas Datafolha sobre religião).
Portanto, as indicações são de que a transição religiosa está se aprofundando e se acelerando no Brasil, assim como ocorre em outros países da América Latina. David Stoll, em livro bastante conhecido, já havia registrado, em 1990, que a América Latina estava se tornando protestante. De fato, países como Guatemala e Honduras já estão bastante avançados na transição religiosa, enquanto o Uruguai é o país menos católico e menos religioso da região.
Evidentemente, ninguém sabe, com certeza, como será o dia de amanhã. Mas as indicações atuais apontam para um Brasil, no futuro, menos católico, mais evangélico e com maior pluralidade religiosa (inclusive com maior presença das pessoas que se declaram sem religião). Muito provavelmente, o país vai superar os 500 anos de predomínio católico e terá uma nova arquitetura religiosa no século XXI.
Referências:
ALVES, J. E. D; NOVELLINO, M. S. F. A dinâmica das filiações religiosas no Rio de Janeiro: 1991-2000. Um recorte por Educação, Cor, Geração e Gênero. In: Patarra, Neide; Ajara, Cesar; Souto, Jane. (Org.). A ENCE aos 50 anos, um olhar sobre o Rio de Janeiro. RJ, ENCE/IBGE, 2006, v. 1, p. 275-308
ALVES, JED, CAVENGHI, S. BARROS, LFW. A transição religiosa brasileira e o processo de difusão das filiações evangélicas no Rio de Janeiro, PUC/MG, Belo Horizonte, Revista Horizonte – Dossiê: Religião e Demografia, v. 12, n. 36, out./dez. 2014, pp. 1055-1085
ALVES, JED, BARROS, LFW, CAVENAGHI, S. A dinâmica das filiações religiosas no brasil entre 2000 e 2010: diversificação e processo de mudança de hegemonia. REVER (PUC-SP), v. 12, p. 145-174, 2012.
ALVES, JED. A vitória da teologia da prosperidade, Folha de São Paulo, 06/07/2012
ALVES, JED. Os Papas, os pobres e a perda de hegemonia dos católicos no Brasil, Ecodebate, RJ, 31/07/2013
ALVES, JED. “A encíclica Laudato Si’: ecologia integral, gênero e ecologia profunda”, Belo Horizonte, Revista Horizonte, Dossiê: Relações de Gênero e Religião, Puc-MG, vol. 13, no. 39, Jul./Set. 2015
ALVES, JED. A transição religiosa no Brasil: 1872-2050. Ecodebate, RJ, 25/07/2016
STOLL, David. Is Latin America turning protestant? The politics of Evangelical Growth. University of California Press, 1990
FRESTON, Paul. Presente e futuro da igreja evangélica no Brasil (parte 2). Ultimato Online, Edição 316, Janeiro-Fevereiro 2009
OLIVEIRA, Vanessa. Número de católicos cai quase pela metade no Grande ABC, Diário do Grande ABC, 7 de dezembro de 2016

Rebeliões prisionais: A face oculta e sórdida do neoliberalismo brasileiro

Rebeliões prisionais: A face oculta e sórdida do neoliberalismo brasileiro
É possível definir, que a omissão do estado brasileiro[2] no trato da questão de segurança pública, em especial o sistema prisional, tem fundamental motivo para o acontecimento de tamanha barbárie que chocou a todos nos noticiários e que receberam fotografias e vídeos das decapitações e desmembramentos em seus celulares e redes sociais.

A omissão dos agentes estatais brasileiros é ainda mais absurda, uma vez que nosso país é regido por uma constituição que protege todos seus cidadãos de penas tortuosas e desumanas, e bem, já dos primeiros códigos republicanos que o Brasil procurou adequar-se a modernas legislações europeias e portanto, oficialmente, nossas leis se fossem respeitadas pelas autoridades, garantiriam aos cidadãos que cumprem pena privativa de liberdade nos presídios, a preservação de sua dignidade humana e consequentemente do seu tratamento como seres humanos.

Dessa forma, e sem exaurir as distintas visões possíveis para um problema tão complexo, proponho a reflexão sobre a questão prisional e as rebeliões sobre a perspectiva da desumanização dos aprisionados, isto é, como o sistema penal brasileiro e o modelo neoliberal de gestão de segurança pública instalado neste país conduziram tais cidadãos a uma condição bárbara, desumana que ocasionou uma rebelião de tamanha proporção violenta como poucas vezes se viu na história mundial.

Para bem dizer, ao contrário do que foi afirmado por importantes autoridades brasileiras, a recente cena de decapitação e desmembramento de dezenas de cidadãos brasileiros dentro de unidades prisionais deste país não foi um fato imprevisível, fortuito ou mesmo um “acidente” de percurso.
Na visão daqueles que cumprem penas, visitam seus familiares ou de alguma forma prestam serviço nas próprias unidades prisionais, ou de alguma forma tratam da temática, tal fato já havia acontecido em proporções menores em outros estabelecimentos prisionais e dadas as condições do sistema prisional brasileiro era apenas questão de tempo para que algo de extrema proporção viesse à tona.

E mais que isso, os noticiários ilustram que governadores e secretários de segurança reeditam as antigas prisões navio da época do Brasil colônia (presigangas), inovam em novíssimas e criativas prisões contêiner, ônibus prisão e afins, além do aprisionamento de cidadãos em lixeiras, em viaturas, o que são fatos cotidianos de nossos dias. Sendo assim, qualquer cidadão com mínima sanidade mental poderia prever que logo algo de pior aconteceria, pois não há homem no mundo que suporte tamanha humilhação e situação degradante.

O testemunho do Batista (Jo 1,29-34) [Carlos Mesters e Ildo Bohn Gass]


O monopólio de mídia e a corrupção da opinião pública







 breve mirada sobre o extenso, dolente e tenso ano de 2016 (que ainda não terminou, politicamente) permite algumas certezas provisórias. Uma delas é: o golpe que levou ao impeachment da presidenta Dilma Rousseff não teria acontecido sem a militância e protagonismo da mídia hegemônica – com o trio Globo, Folha de S. Paulo e Estadão à frente.
Atuando em fina sintonia com a força tarefa da Lava-Jato (PF, MPF e juiz Moro), o Supremo Tribunal Federal (legitimando os atos do réu que presidia a Câmara Federal) e o Centrão, no Congresso Nacional, a mídia monopolista deu o tom da prosa, hegemonizou corações e mentes, fraudou, praticou vazamentos seletivos em profusão, e de forma cirúrgica construiu as bases de um Estado de Exceção, cujos sinais estão muito evidentes.
Na virada de 1º de janeiro, e horas subsequentes, três acontecimentos recolocam a mídia monopolista (comandada por um pequeno grupo de “famiglias” – Marinho, Mesquista, Frias, Civita, Saad, Abravanel & Associados) como sempre na vanguarda do atraso, linha de frente da defesa de um governo ilegítimo, sem voto popular, que ajudaram a “entronizar” no poder – operando uma agenda lesa-pátria e antipopular. Falo objetivamente de três chacinas: a de Campinas (o feminicídio nunca assim descrito), e as matanças hediondas nos presídios de Manaus e Roraima.
Feminicídio
Poucos minutos antes da virada do ano, o técnico de laboratório Sidnei Ramis de Araújo, de 46 anos, invadiu uma casa onde a família de sua ex-mulher comemorava o réveillon em Campinas e matou oito mulheres (incluindo Isamara Filier, 41 anos), seu filho, João Victor Filier de Araújo, 8 anos e mais duas pessoas. O assassino se suicidou em seguida.
O crime premeditado foi tratado pela mídia como chacina, evitando-se falar em feminicídio. O Portal G1 chamou de “chacina”; a Folha de S. Paulo tratou como “assassinato coletivo” e o Estadão cravou na factualidade (“Homem mata ex-mulher, filho e mais 10 durante Revéillon em Campinas”), embora tenha registrado que o crime fora premeditado.
É no site da revista Veja (Grupo Abril) que o/a leitor/a vai encontrar o enquadramento que orientou, por absoluta naturalização do crime de ódio à mulher, o acontecimento hediondo de Campinas. “Leia carta deixada por autor de chacina em Campinas”, é o título da matéria publicada no site (ed. 1º/jan/2017, 19h08). Editando trechos considerados como “acusações sem provas e citações a outras pessoas”, para o jornalismo de Veja o matador “faz ameaças e explica seu plano”. Feminicídio? Misoginia? Qual nada…
As digitais do discurso de ódio, legitimado pela mídia hegemônica, estão na carta do assassino e suicida, escritas em português (do Brasil): as mulheres são tratadas como vadias, a Lei é “Vadia” da Penha e a ex-presidente Dilma também não foi poupada e pela enésima vez é chamada de “vadia”. Sobre isso o silêncio da mídia hegemônica é ensurdecedor. Aqui e acolá, nos blogs e espaços de jornalismo independente na internet, se ouve ainda o clamor da indignação e a precisão das análises de pesquisadores e jornalistas. A palavra “vadia” é citada 12 vezes na carta do assassino.
A jornalista Cynara Menezes observou que “contra Dilma, foram incontáveis as vezes em que ela foi chamada de ‘vadia’ e outros termos homólogos a ‘prostituta’ na internet e em cartazes nas manifestações verde e amarelas: ‘puta’, ‘vaca’, ‘vagabunda’, ‘quenga’. Em 2010, o cartunista Nani foi pioneiro no machismo contra Dilma ao mostrar a candidata ‘rodando a bolsinha’ numa esquina; a charge foi divulgada pelo portal mais visitado do país, o UOL.
Em análise publicada no seu blog (Socialista Morena), Cynara indaga precisa: “Quem inventou o ódio às feministas presente na carta do atirador de Campinas? Quem o disseminou? Nos programas pseudohumorísticos da televisão aberta e nas redes sociais, é considerado piada inofensiva chamar as feministas de ‘feminazis’, achincalhá-las noite e dia, demonizá-las”. No final, reflete sobre o papel da mídia no feminicídio de Campinas, sem meias palavras: “É inegável que, para atingir Dilma, a mídia naturalizou o desprezo às mulheres que se destacam e que lutam contra o machismo. Precisa assumir sua enorme responsabilidade na misoginia que insuflou. O caso de Campinas infelizmente não é fato isolado”.
“Acidente pavoroso”
Três longos dias se passaram entre a chacina de 56 presos (dos quais 28 foram decapitados) no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), em Manaus (AM), até o presidente Temer dar o ar de sua graça. Na noite de domingo (08/01), mais quatro mortes foram confirmadas em Manaus, subindo para 60 o total de vítimas.
O Portal G1 reproduziu a fala de Mr. Temer: “Eu quero numa primeira fala, mais uma vez, solidarizar-me com as famílias que tiveram seus presos vitimados naquele acidente pavoroso que ocorreu no presídio de Manaus”. Sem nenhum contraponto ou voz discordante, o portal do Grupo Globo continua de microfone aberto para o presidente impostor isentar seu governo e o do Amazonas de quaisquer responsabilidades: “Vocês sabem que lá em Manaus o presídio era terceirizado, era privatizado, e, portanto, não houve, por assim dizer, uma responsabilidade muito objetiva, muito clara, muito definida dos agentes estatais”. O “presidente disse” e voltou a dizer e por aí segue o “jornalismo declaratório” chapa-branca, sem questionamentos ou contrapontos possíveis.
A cobertura da Folha de S. Paulo, neste caso, partiu de uma reportagem investigativa em equipe (assinada pela jornalista Bruna Chagas, de Manaus; Dhiego Maia, Fabiano Maisonnave e Fernanda Pereira Neves, de S. Paulo), publicada na edição de 02/01/2017. Só no 4º parágrafo o/a nobre leitor/a vai encontrar um dado mais preciso do contexto: “Em Manaus, o motim começou na tarde de domingo (1º), no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), localizado no km 8 da BR-174. Na unidade havia 1.224 homens, o triplo da capacidade (de 454 vagas), segundo dados do mês passado do governo estadual”.
O pecado maior é a omissão de um dado fundamental na hierarquia da informação jornalística da reportagem coletiva: o Compaj é um presídio privatizado. O leitor precisa apurar muito sua lupa e paciência para descobrir, lá pelas tantas nos 5.649 caracteres com espaços a informação solta e sem contexto: “Dos reféns no Compaj, 74 eram detentos e outros 12 funcionários da Umanizzare, empresa de gestão privada que presta serviço no complexo”.
A informação só iria aparecer com destaque nas páginas da Folha no dia 06/01: “Matança em Manaus põe gestão privada de presídios em xeque”, era o título da matéria. No lead mais uma omissão grave: o nome da empresa gestora do presídio palco da chacina não era citado. Confira: “O fato de a administração do presídio de Manaus palco de 56 mortes ser de uma empresa privada reacendeu a discussão dos modelos de gestão das penitenciárias do país. Alardeada como alternativa à falência do sistema carcerário, a gestão privada tem vantagens e desvantagens, mas está longe de ser solução mágica, dizem especialistas”. A gestora do Compaj é a empresa Umanizzare Gestão Prisional Privada.
Uma ponta solta do novelo de responsabilidades pelos crimes aparece outra vez jogada no meio do texto: “O custo que o Estado do Amazonas tem com seus presos em unidades geridas pela iniciativa privada é quase o dobro da média nacional. Segundo dados do governo Estadual do Amazonas, no ano de 2016, foram pagos R$ 301 milhões à Umanizzare por serviços em seis presídios no Estado. No Amazonas, a empresa tem sob sua responsabilidade 6.099 detentos, o que representa um custo médio de R$ 4.112 ao mês”. Ou seja, a privatização dobrou o custo público, logo a pergunta é: onde foram aplicados esses recursos?
A cobertura da Folha é objeto de análise crítica da ombudsman do jornal, Paula Cesarino Costa, em sua coluna dominical (08/01/2017) – “Cada cabeça, uma sentença”. A jornalista, não obstante considerar “o bom material investigativo e eficiente acompanhamento factual”, cobra duramente: “O ponto negativo foi o jornal publicar declarações de autoridades – que variavam do absurdo ao constrangedor – sem que elas fossem questionadas e problematizadas. Na edição de sexta-feira, 6, que trazia editorial crítico ao governo, o jornal noticiou a infeliz declaração do presidente em meio à reportagem sobre pacote de segurança requentado. Ao não destacar a frase de Temer sobre o ‘acidente’, o jornal deixou de iluminar faces do presidente: lento nas reações e infeliz na comunicação de governo”.
Ao final, a jornalista cobra do diário paulista: “O jornal não pode aceitar barbaridades como decapitações de presos sob a guarda do Estado nem colaborar para sua vulgarização. É preciso indignação. É preciso cobrar que, para cada cabeça decepada, haja uma sentença judicial. A defesa dos direitos civis não pode estar associada a correntes ideológicas. É uma cláusula pétrea do contrato social de um país. São direitos inegáveis, irredutíveis, acima de governos e governantes. Não podem ser violados impunemente, seja por incompetência ou omissão”. Seu brado parece não ecoar nos “aquários” daqueles que comandam a Folha. A manchete desta mesma edição é uma defesa, sem pudor, da ideologia da previdência privada – pano de fundo da maior jogada do governo Temer, em tramitação no Congresso.
Apologia à chacina
Sobre a chacina de Roraima, há dois fatos jornalísticos que destaco. O primeiro, foi a mentira do ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, ao afirmar que a governadora Suely Campos (PP-RR) não havia pedido auxílio federal – e foi desmentido através da exibição de documento oficial, protocolado em 24 de novembro de 2016 em seu ministério. A imprensa no geral, deixou barato e não cobrou uma posição de Temer sobre a questão. Em uma democracia de fato, Moraes já seria ex-ministro por mentir à sociedade. A segunda, envolveu um auxiliar direto do ora presidente da República, o secretário nacional da Juventude. Vou me ater ao segundo caso, que me parece mais simbólico.
Observo, por fim, o caso que levou à queda de mais um integrante da cúpula do governo Temer. O Portal G1 (Grupo Globo) assim noticiou: “Secretário pede demissão e Temer aceita depois de declaração polêmica” (grifo meu). A reportagem se referia à fala de Bruno Júlio, secretário nacional de Juventude, referindo-se às chacinas de Manaus e Roraima: “Tinha era que matar mais. Tinha que fazer uma chacina por semana”.
No mesmo dia, ele foi demitido (“pediu exoneração e o Presidente aceitou”), ante a repercussão negativa, dentro e fora do país. O órgão é vinculado diretamente à Presidência da República. Mas, observemos: para o G1 uma autoridade pública, cujo local de fala é o Palácio do Planalto, não fez apologia ao crime e apenas deu uma declaração “polêmica”.
O ex-secretário havia falado para o jornal O Globo (coluna de Ilimar Franco, que deu o “furo”, mas não tinha o áudio da entrevista) e para a jornalista Grasielle Castro, do HuffPost Brasil (“Secretário da Juventude de Temer defende mais chacinas em cadeia”), que gravou a entrevista e foi decisiva para desmascarar a tentativa de Júlio de negar o que dissera (ouça o áudio do HuffPost Brasil e leia na íntegra a transcrição): “Eu sou meio coxinha sobre isso. Sou filho de polícia, né? Tinha era que matar mais. Tinha que fazer uma chacina por semana. Isso que me deixa triste. Olha a repercussão que esse negócio que o presídio teve e ninguém está importando com as meninas que foram mortas em Campinas”.
A Folha manteve o mesmo tom na cobertura tratando a declaração criminosa como “polêmica”, mas pelo menos na versão online publicou um título mais adequado: “Secretário de Temer cai após dizer que massacre ‘tinha que matar mais’”. Observe o texto da Folha: “O secretário nacional de Juventude, Bruno Júlio (PMDB-MG), vai deixar o cargo depois de criticar a repercussão do massacre nos presídios do país, que deixaram 93 mortos na primeira semana do ano. A polêmica começou após ele declarar ao jornal “O Globo” que “tinha que matar mais’ ao comentar ao a morte dos presos. Em entrevista à Folha pouco depois, Júlio negou a frase e disse que sua opinião havia sido ‘deturpada’” (grifo meu).
O Estadão, pelo menos, não tratou o episódio como “polêmica” e foi mais incisivo em sua manchete primeira, “Secretário de Temer cai após apoiar massacre em presídios”, pouco tempo depois alterada para “Secretário de Temer cai após criticar ‘valorização de morte de condenados’”. Confira o lead: “O secretário nacional de Juventude, Bruno Júlio, deixou o cargo na noite desta sexta-feira, 6, depois de criticar a repercussão dada ao massacre de presos no Amazonas e em Roraima. Ele disse que ‘está havendo uma valorização muito grande da morte de condenados, muito maior do que quando um bandido mata um pai de família que está saindo ou voltando do trabalho’. (…) Para o Palácio do Planalto, a declaração do secretário foi ‘infeliz’, uma ‘tragédia’. O governo agiu rápido para evitar uma nova crise e costurou a saída do secretário”.
Corrupção da opinião pública
Os dados da Pesquisa Brasileira de Mídia (2016), divulgados no começo de dezembro passado, indicam com clareza solar o peso vertical do monopólio de mídia sobre a formação a opinião pública, no país. O estudo, encomendado pela Casa Civil da Presidência da República junto ao Ibope Inteligência ouviu 15.050 pessoas, nos 26 estados mais o Distrito Federal, cobrindo mais de 700 municípios.
O índice de confiança nas notícias apurado na pesquisa é contraditório com o alcance da mídia: Jornal (impresso) tem 60% de taxa de confiança, rádios com 57%, televisão com 54%; revistas com 40% e meios digitais têm os índices mais baixos – sites, com 20%, redes sociais, 14% e blogs com apenas 11%. No entanto, isso diz ainda muito pouco.
A pergunta reveladora do peso do monopólio é outra: “Em que meio de comunicação o (a) sr (a) se informa mais sobre o que acontece no Brasil?”. A TV aparece destacada com 63%, seguida da Internet com 26%, Rádio com 7% e Jornal com 3%. É como resumiu a pesquisadora Lívia Vieira, num diálogo breve conosco via Facebook: “O predomínio da TV como fonte de informação (63%) é assustador, dado o cenário de monopólio que temos. Isso explica bastante coisa. Internet, rádio e jornal, somados, não chegam nem perto…”. Dos respondentes, 50% afirmam acessar a internet 7 dias por semana, contra 37% que dizem não acessar nunca.
Para o jornalista Luciano Martins Costa, especialista em crítica de mídia e mestre em Comunicação, que colaborou muitos anos com o Observatório da Imprensa, “esse jornalismo é resultado de quase duas décadas de destruição da diversidade política nas redações: desde o início deste século, sobrevivem ou são contratados nas principais empresas de mídia apenas os profissionais que aceitam a tarefa de desmoralizar todo e qualquer protagonista da cena pública que se aproxime do perfil humanista. Em contrapartida, qualquer imbecil que se empenhe em divulgar preconceitos, intolerância e outras bestialidades do pensamento reacionário, ganha status de filósofo”.
Finalizo tomando emprestada as palavras de Sylvia Moretzsohn, professora e pesquisadora da Universidade Federal Fluminense (UFF) e minha colega aqui no objETHOS: “Como não se cansam de dizer o Venicio Lima e o Juarez Guimarães, a pior de todas as corrupções é a corrupção da opinião pública”.
O vício da “narrativa torta” aparece e é confrontado pelo sociólogo italiano Domenico Di Masi, em entrevista ao jornal Valor Econômico (Grupo Globo). Repetindo até a náusea o mantra “o país está quebrado”, a jornalista Cristiane Barbieri, que abre a conversa com Di Mais recitando esse bordão midiático (a crise é inegável, mais a narrativa midiática sobre a crise econômica é muitíssimo mais grave), retoma a questão perguntando: “Estamos discutindo a reforma da Previdência, num país quebrado e a principal alternativa apresentada é o aumento da idade para a aposentadoria…”. Ao que o sociólogo responde: “O Brasil não está sem dinheiro. Os milionários não fazem parte do país? O Brasil tem muito dinheiro. Os pobres é que não têm dinheiro. Os impostos no Brasil são cerca de 30%, enquanto na Itália giram em 60%. É preciso redistribuir essa carga” (Caderno Eu & Fim de Semana, ed. 06/01/2017, p. 4-6).
A julgar pela primeira semana (ainda faltam 51) de 2017, este parece ser o rumo da mídia hegemônica no país: seguir sua militância fundamentalista, que atenta contra a democracia e os valores civilizatórios, e quando levada aos extremos corrompe a opinião pública. A ver.
*Por Samuel Lima, Professor de Jornalismo e da Pós-Graduação em Jornalismo (Posjor) da UFSC e pesquisador do objETHOS e do Laboratório de Sociologia do Trabalho (LASTRO/UFSC)