sábado, 28 de janeiro de 2017

As bem-aventuranças (Mateus 5, 1 – 12) [Marcelo Barros]

O primeiro discurso dos cinco nos quais a comunidade de Mateus organiza as palavras de Jesus é o chamado “Sermão da Montanha” (Mt 5- 7). No mundo antigo, a montanha é considerada lugar sagrado. Conforme a Bíblia, Moisés subiu nove vezes à montanha do Sinai. Jesus também sobe à montanha, continuando o seu papel de “novo Moisés” (repitamos: não para substituir Moisés ou a lei judaica, mas para ampliá-la para todo o mundo e explicitá-la como boa notícia do reinado divino).
Carlos Mesters explica: “O Sermão da Montanha abre-se com oito bem-aventuranças. Elas são o portão de entrada deste e dos textos que seguem. Declaram felizes os pobres caracterizados de oito maneiras, pois neles o Reino de Deus já se faz presente como dom e graça de Deus no meio de nós e apesar de nós. Deste modo, as bem-aventuranças nos informam onde devemos olhar para descobrir os sinais da presença deste Reino no mundo em que vivemos” .  
Alguém chamou a atenção para o fato de que, apesar da tradição cristã sempre ter falado em oito bem-aventuranças, o texto repete nove vezes: “Felizes”. E, sendo nove, bem no meio está a bem-aventurança dos misericordiosos. De fato, a misericórdia, o amor fiel e compassivo de Deus é a manifestação mais própria de Deus e o modo de nos parecermos mais com Ele.
O primeiro salmo da Bíblia começa por esta palavra: “Feliz”, “Bendito”, ou “Bem-aventurado”. Faz parte da piedade judaica a Beraká, a bênção, como proclamação da vida em nome de Deus para as pessoas e o universo. “O termo (asherê) ocorre 45 vezes no texto hebraico da Bíblia. As proclamações de bênçãos (macarismos vem do termo grego “makarios”) são muito freqüentes em livros judaicos não bíblicos como o Apocalipse de Baruc, o IV livro de Esdras e outros”  .
Chouraqui rejeita a tradução que é tradicional em todas as versões: “Felizes”, ou “Bem-aventurados”. Ele mostra que, na base da tradução do hebraico para o grego, houve um engano de sentido das palavras e insiste em traduzir como: “Em marcha…”. De fato, etimologicamente ele tem, certamente, toda razão. Mas, me parece que o sentido das palavras evolui e um sentido engloba o outro. Quando, em português, alguém diz que está feliz pode estar dizendo: “Estou progredindo!” (no caminho, nas finanças, ou no plano interior).  
Como um pobre rabino itinerante que quer ajudar o povo a renovar a aliança com Deus, Jesus traz uma novidade imensa: parece que nenhum outro texto antigo sublinha tanto a gratuidade da proclamação do Reino. Enquanto os textos apocalípticos dizem: “Felizes os que temem ao Senhor, felizes os que fazem julgamentos justos”, Jesus acentua a gratuidade do reinado divino e abre essa felicidade do reino a todos, principalmente aos excluídos do mundo e do próprio sistema religioso (qualquer que ele seja).  
A maior produção do mundo atual é a exclusão de milhões de pessoas. Jesus começa a proclamação do reinado divino se dirigindo a eles e lhes prometendo que pela vinda deste reino se acabarão as injustiças responsáveis pela marginalização deles.
As promessas são o resumo de todas as promessas bíblicas. O reino vem para as pessoas pobres. Então, quem chora será consolado/a, quem tem fome será saciado/a, as pessoas que têm fome e sede de justiça serão satisfeitas. Por quem? Por Deus. O fato de falar sempre no passivo (“serão”) é sinal de que vocês estão falando de uma ação divina. Na América Latina, essas promessas têm sustentado a esperança de muitos irmãos e irmãs dos quais um bom número deu a vida pelo reino. E estas promessas se realizam, não porque essas pessoas (pobres, famintas ou as que choram) sejam boas ou justas, mas porque Deus as ama e não aceita que continuem sofrendo. É significativo que a proclamação do reino comece pela indicação de caminhos para a felicidade: “felizes”, ou “benditas”…
Cada vez mais, é importante esse testemunho: Jesus nos chama para ser felizes no caminho do reino. Outro dia, li uma piada a respeito de um cristão que morre e se surpreende quando quer entrar no céu e Jesus lhe diz que ele não está preparado. Ele insiste: Mas, por que Senhor?
Jesus lhe responde imediatamente:
– Por que você não fez tudo o que era necessário para ser feliz.
A luta da vida consiste em buscar a felicidade. Todo mundo quer ser feliz. Mas, Jesus indica como caminho para a gente ser feliz o contrário do que o mundo propõe. Lucas havia transcrito as bem-aventuranças como bênçãos dirigidas diretamente aos pobres (“Felizes vocês que são pobres”). Vocês das comunidades de Mateus traduziram por “Felizes os que têm coração de pobre” (os que assumem com consciência o fato de ser pobres). No começo da caminhada das comunidades eclesiais de base, muitos se perguntavam se os pobres “de espírito” ou “de coração” que Jesus proclama bem-aventurados seriam as pessoas humildes e sem ambição. Praticamente, todos os comentadores latino-americanos têm insistido que, na tradição bíblica, a promessa divina é de salvar os pobres reais, no sentido de pessoas despossuídas, carentes e oprimidas (Lv 19, 10. 15; Pr 14, 31; 28, 15). Aqui se incluem o órfão, a viúva, o migrante, os que se sentem indefesos diante do malvado (Cf. Dt 24, 19; Jó 29, 12- 16 e Sl 10). Na sua versão destas palavras de Jesus, Lucas diz simplesmente: “Felizes vocês que são pobres!” (Lc 6, 20). Parece que esta versão seria mais primitiva. Ao acrescentar “de coração”, Mateus acentua que não basta ser pobre econômica e socialmente (embora seja o elemento fundamental). Precisa assumir a pobreza e ter consciência de sua realidade. É bom ler as bem-aventuranças em seu contexto social.
 
Hoje, quando dizemos “as pessoas que choram”, muitas vezes, pensamos nas situações de sofrimento e infelicidade da vida pessoal. Jesus fala ao coletivo e parece referir-se aos que são vítimas do desgoverno dos opressores. Isaías 61 se referia aos que choram e prometia que Deus mudaria sua tristeza em alegria, pela volta do povo do exílio e pela libertação sócio-política. A bem-aventurança dos mansos nos recorda, hoje, todos os movimentos de ação não violenta. O salmo já dizia: “os pequenos possuirão a terra” (Sl 37, 10- 11). A terra é de Deus e ele a dá aos pequenos. Hoje, lutamos pelo direito dos lavradores à terra e para que a humanidade retome o cuidado com a Terra como planeta que nos foi entregue. E neste cuidado, sabemos que a solução ecológica e social não virá dos grandes, mas dos pequenos. Jesus proclama bem-aventuradas as pessoas misericordiosas. A misericórdia já é uma virtude aconselhada pela tradição bíblica (Pr 14, 21; Os 6, 6 e Tb 4, 5- 7). O próprio Jesus vai retomar Oséias ao dizer: “Eu quero a misericórdia e não o sacrifício” (Mt 9, 13). Os filósofos romanos não tinham em alta conta a misericórdia. Parecia uma atitude dos fracos. Jesus a acentua como uma espécie de contracultura que continua muito atual, principalmente em um mundo de competição.
A bem-aventurança das pessoas puras de coração recorda o salmo 24, 4 e diz respeito à totalidade do ser. O coração é o mais íntimo do ser. A promessa de ver a Deus (Na Bíblia se dizia que ninguém podia ver a Deus) é reservada a esses inteiros e totais em sua vida. As pessoas que constroem a paz fazem o que Deus faz. Por isso são chamados “filhos e filhas de Deus”, porque a paz é ação divina e fazer a paz é se comportar divinamente. O salmo 72 é a promessa de um reino de paz verdadeira. E a bem-aventurança seguinte é quase a consequência desta: trata das pessoas perseguidas por causa da justiça. Os discípulos e discípulas são associados aos profetas exatamente por causa desta firmeza que faz com que sejam perseguidos por causa da justiça. É a bem-aventurança do martírio que tantos/as da Igreja na América Latina viveram nos últimos anos, de forma concreta e total.  

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