Abrir os olhos para ver
O texto de Evangelho que meditaremos no próximo
domingo traz uma grande incoerência da parte dos discípulos de Jesus.
Enquanto Jesus anunciava a sua paixão e morte, os discípulos discutiam
entre si quem deles era o maior. Jesus queria servir, eles só pensavam
em mandar! A ambição os levava a querer subir às custas de Jesus. Vamos
conversar sobre isto.
Situando
Esta reflexão traz o segundo anúncio da paixão,
morte e ressurreição de Jesus. Como no primeiro anúncio - Mc 8, 27-38
-, os discípulos ficam espantados e com medo. Não entendem a palavra
sobre a cruz, porque não são capazes de entender nem de aceitar um
Messias que se faz empregado e servidor dos irmãos. Eles continuam
sonhando com um messias glorioso. O texto ajuda a perceber algo da
pedagogia de Jesus. Mostra como ele formava os discípulos, como os
ajudava a perceber e a superar o "fermento dos fariseus e de Herodes".
Tanto na época de Jesus como na época de Marcos,
havia o fermento da ideologia dominante. Também hoje, a ideologia da
propagandas do comércio, do consumismo, das novelas influi
profundamente no modo de pensar e de agir do povo. Na época de Marcos,
nem sempre as comunidades eram capazes de manter uma atitude crítica
frente à invasão da ideologia do império. A atitude de Jesus com
relação aos apóstolos, descrita no evangelho, as ajudava e continua
ajudando a nós hoje.
Comentando
Marcos 9,30-32: O anúncio da cruz
Jesus caminha através da Galileia, mas não quer que o
povo o saiba, pois está ocupado com a formação dos discípulos e
discípulas e conversa com eles sobre a cruz. Ele diz que, conforme a
profecia de Isaías - Is 53,1-10 -, o Filho do Homem deve ser entregue e
morto. Isto mostra como Jesus se orientava pela Bíblia, na formação
aos discípulos. Ele tirava o seu ensinamento das profecias. Os
discípulos o escutam, mas não entendem a palavra sobre a cruz. Mesmo
assim, não pedem esclarecimento. Eles tem medo de deixar transparecer
sua ignorância.
Marcos 9,33-34: A mentalidade de competição
Chegando em casa, Jesus pergunta: Sobre que vocês
estavam discutindo no caminho? Eles não respondem. É o silêncio de quem
se sente culpado, pois pelo caminho discutiam sobre quem deles era o
maior. Jesus é bom formador. Não intervém logo, mas sabe aguardar o
momento oportuno para combater a influência da ideologia dos seus
formandos. A mentalidade de competição e de prestígio que caracteriza a
sociedade do Império Romano já se infiltrava na pequena comunidade que
estava apenas começando! Aqui aparece o contraste! Enquanto Jesus se
preocupa em ser o Messias Servidor, eles só pensam em ser o maior.
Jesus procura descer. Eles querem subir!
Marcos 9, 35-37: Servir, em vez de mandar
A resposta de Jesus é um resumo do testemunho de
vida que ele mesmo vinha dando desde o começo: Quem quer ser o primeiro
seja o último de todos, o servidor de todos! Pois o último não ganha
nada. É um servo inútil (cf. Lc 17,10). O poder deve ser usado não para
subir e dominar, mas para descer e servir. Este é o ponto em que Jesus
mais insistiu e em que mais deu o seu próprio testemunho (cf. Mc
10,45; Mt 20,28; Jo 13,1-16).
Em seguida, Jesus coloca uma criança no meio deles.
Uma pessoa que só pensa em subir e dominar não daria tão grande atenção
aos pequenos e às crianças. Mas Jesus inverte tudo! Ele diz: "Quem
receber uma destas crianças em meu nome é a mim que recebe. Quem
receber a mim recebe aquele que me enviou! Ele se identifica com as
crianças. Quem acolhe os pequenos em nome de Jesus acolhe o próprio
Deus!
Alargando
Um retrato de Jesus como formador
"Seguir" era um termo que fazia parte dos sistema da
época. Era usado para indicar o relacionamento entre o discípulo e o
mestre. O relacionamento mestre-discípulo é diferente do relacionamento
professor-aluno. Os alunos assistem às aulas do professor sobre uma
determinada matéria. Os discípulos "seguem" o mestre e convivem com
ele. Foi nesta "convivência" de três anos com Jesus que os discípulos e
as discípulas receberam a sua formação.
Não é pelo fato de uma pessoa andar com Jesus que
ela já é santa e renovada. No meio dos discípulos, cada vez de novo, a
mentalidade antiga levantava a cabeça, pois o "fermento de Herodes e
dos fariseus" - Mc 8,15-, isto é, a ideologia dominante, tinha raízes
profundas na vida daquele povo. A conversão que Jesus pede quer atingir
a raiz e erradicar o "fermento''. Já vimos como Jesus combatia a
mentalidade antigo de competição e de prestígio - Mc 9,33-37 e a
mentalidade fechada de quem se considera dono de tudo - Mc 9,38-40. Eis
alguns outros casos desta ajuda fraterna de Jesus aos discípulos.
• Mentalidade de grupo que se considera superior aos outros
Certa vez, os samaritanos não queriam dar hospedagem
a Jesus. Reação dos discípulos: "Que um fogo do céu acabe com esse
povo" (Lc 9,54). Achavam que, pelo fato de estarem com Jesus, todos
deviam acolhê-los. Pensavam ter Deus do seu lado para defendê-los. Era a
mentalidade antiga de "Povo eleito, Povo privilegiado!" Jesus os
repreende: ''Vocês não sabem de que espírito estão sendo animados" (Lc
9,55).
• Mentalidade de quem marginaliza o pequeno
Os discípulos afastavam as crianças. Era a
mentalidade da cultura da época em que criança não contava e devia ser
disciplinada pelos adultos. Jesus os repreende: ''Deixem vir a mim as
crianças!" (Mc 10,14). Ele coloca a criança com professora de adulto:
"Quem não receber o Reino como uma criança não pode entrar nele" (Lc
18,17).
• Mentalidade de quem pensa conforme a opinião de todo mundo
Certo dia, vendo um cego, os discípulos perguntaram:
''Quem pecou, ele ou seus pais, para que nascesse cego?" (Jo 9,2).
Como hoje, o poder da opinião pública era muito forte. Fazia todo o
mundo pensar de acordo com a cultura dominante. Enquanto se pensa assim
não é possível perceber todo o alcance da Boa Nova do Reino. Jesus os
ajuda a ter uma visão mais crítica: ''Nem ele, nem os pais dele'' (Jo
9,3). A resposta de Jesus supõe uma leitura diferente da realidade.
Jesus, o Mestre, é o eixo, o centro e o modelo da
formação. Pelas suas atitudes, ele é uma amostra do Reino, encarno o
amor de Deus e o revela (Mc 6,31; Mt 10,30; Lc 15,11-32). Muitos
pequenos gestos refletem este testemunho de vida com que Jesus marcava
presença na vida dos discípulos e das discípulas, preparando-os para a
vida e a missão. Era a sua maneira de dar forma humana a experiência
que ele mesmo tinha de Deus como Pai:
• Envolve-os na missão - Mc 6,7; Lc 9,1-2; 10,1.
• Na volta, faz revisão com eles - Lc 10,17-20.
• Corrige-os quando erram e querem ser os primeiros - Mc 9,33-35; 10,14-15.
• Aguarda o momento oportuno para corrigir - Lc 9,46-48; Mc 10,14-15.
• Ajuda-os a discernir - Mc 9,28-29.
• Interpela-os quando são lentos - Mc 4,13; 8,14-21.
• Prepara-os para o conflito - Jo 16,33; Mt 10,17-25.
• Manda observar a realidade - Mc 8,27-29; Jo 4,35; Mt 16,1-3.
• Reflete com eles sobre as questões do momento - Lc 13,1-5.
• Confronta-os com as necessidades do povo - Jo 6,5.
• Ensina que as necessidades do povo estão acima das prescrições rituais - Mt 12,7.12.
• Tem momentos a sós para poder instrui-los - Mc 4,34; 7,17; 9,30-31; 10,10; 13,3.
• Sabe escutar, mesmo quando o diálogo é difícil - Jo 4,7-42.
• Ajuda-os a aceitar a si mesmos - Lc 22,32.
• É exigente e pede para deixar tudo por amor a ele - Mc 10,17-31.
• É severo com a hipocrisia - Lc 11,37-53.
• Faz mais perguntas que dá respostas - Mc 8,17-21.
• É firme e não se deixa desviar do caminho - Mc 8,33; Lc 9,54.
• Prepara-os para o conflito e a perseguição - Mt 10,16-25.
Este é um retrato de Jesus como formador. A formação
do "seguimento de Jesus" não era, em primeiro lugar, a transmissão de
verdades a serem decoradas, mas sim a comunicação da nova experiência
de Deus e da vida que irradiava de Jesus para os discípulos e
discípulas. A própria comunidade que se formava ao redor de Jesus era a
expressão desta nova experiência. A formação levava as pessoas a terem
outros olhos, outras atitudes. Fazia nascer nelas uma nova consciência
a respeito da missão e a respeito de si mesmas. Fazia com que fossem
colocando os pés do lado dos excluídos. Produzia, aos poucos, a
"conversão" como consequência da aceitação da Boa Nova (Mc 1,15).
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